sexta-feira, 9 de julho de 2010

"E quando acaricio a cabeça do meu cão, sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique." (CL)

Quando morou em Nápoles, Clarice Lispector adotou o cachorro Dilermando, encontrado na rua.
“Quanto a mim, foi só olhar que logo me apaixonei pela cara dele. (...) Apesar de ser italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando. (...) levei Dilermando para casa. Logo dei comida a ele. Ele parecia tão feliz por eu ser dona dele que passou o dia inteiro olhando para mim e abanando o rabo.(...) Dilermando gostava tanto de mim que quase endoidecia quando sentia pelo faro o meu cheiro de mulher-mãe e o cheiro do perfume que uso sempre.(...)Quando eu estava escrevendo à máquina, ele ficava meio deitado ao meu lado, exatamente como a figura da esfinge, dormitando. Se eu parava de bater por ter encontrado um obstáculo e ficava muito desanimada, ele imediatamente abria os olhos, levantava alto a cabeça, olhava-me, com uma das orelhas de pé, esperando. Quando eu resolvia o problema e continuava a escrever, ele se acomodava de novo na sua sonolência povoada de sonhos — porque cachorro sonha, eu vi. Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão.”
Às irmãs Elisa e Tânia, Clarice escreveu: “Você não sabe que revelação foi para mim ter um cão, ver e sentir a matéria de que é feito um cão. É a coisa mais doce que eu já vi, e é de uma paciência para com a natureza impotente dele e para com a natureza incompreensível dos outros... E com os pequenos meios que ele tem, com uma burrice cheia de doçura, ele arranja um modo de compreender a gente de um modo direto. Sobretudo Dilermando, era uma coisa minha e eu não tinha que repartir com ninguém”.
Quando se mudou para a Suíça, Clarice teve de deixar Dilermando. Para tentar expiar a culpa, escreveu o conto O Crime, publicado em 1946 em um jornal do Rio de Janeiro e ampliado e rebatizado, posteriormente, de O Crime do Professor de Matemática, sendo ele o mais antigo dos contos publicados no livro Laços de Família.

Trecho do conto O Crime do Professor de Matemática:

“'Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa. Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. (...) Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer.' pensou o homem cada vez mais lúcido (...) 'Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão.', pensou o homem. (...) 'Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.'(...)
Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições."

4 comentários:

  1. Extraído de http://www.revistabula.com/, com adaptações. Artigo de Euler de França Belém sobre Clarice Lispector, baseado na biografia "Clarice,", de Benjamnin Moser.

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  2. Meninas, recomendo muito a leitura integral desse conto. É maravilhoso!

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  3. Lindo post, Van... e esse conto é um dos que me fazem chorar MUITO!

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  4. Amo Clarice prima...ela permite que nos encontremos em muito do que ela escreve...tudo muito perfeito e profundo...essa frase que vc utilizou é a minha preferida!

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