sábado, 30 de outubro de 2010

Lentidão das coisas etéreas


"Aqueles últimos meses se gastaram com a lentidão das coisas etéreas. Víamos a natureza abandonar as cores mortas do inverno, tingir-se solenemente de festa, até esmorecer suas flores sob o calor fustigante do sol de verão.
"


Trecho de A casa das sete mulheres de Letícia Wierzchowski

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Grão De Amor


Me deixe sim
Mas só se for
Pra ir ali
E pra voltar.

Me deixe sim
Meu grão de amor
Mas nunca deixe
De me amar

Agora as noites são tão longas
No escuro eu penso em te encontrar
Me deixe só
Até a hora de voltar

Me esqueça sim
Pra não sofrer
Pra não chorar
Pra não sentir

Me esqueça sim
Que eu quero ver
Você tentar
Sem conseguir

A cama agora está tão fria
Ainda sinto o seu calor
Me esqueça sim
Mas nunca esqueça o meu amor

É só você que vem
No meu cantar meu bem
É só pensar que vem
Lá ra ra ra

Me cobre mil telefonemas
Depois me cubra de paixão
Me pegue bem
Misture alma e coração


Composição: Marisa Monte/Carlinhos Brown/Arnaldo Antunes

Para quem quiser conferir na voz dos Tribalistas!
http://www.youtube.com/watch?v=L30T0ExD-As




E não havia mais nada



" Não acendeu o fogo, não fez o jantar, não bebeu chá; tarde da noite comeu apenas um pedaço de pão. E ao deitar-se disse para consigo que nunca na vida se sentira tão só, tão nua. Nos últimos anos, habituara-se a viver na espera constante de algo importante, feliz. Em volta dela, os jovens agitavam-se, barulhentos e cheios de animação e ela tinha sempre diante dos olhos o rosto sério do filho, o fomentador dessa vida inquieta, mas boa. E eis que ele não estava mais ali e não havia mais nada."




Trecho de A mãe de Máximo Gorki

Alma


"A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos.
Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas, como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que..."


Dom Casmurro, Machado de Assis.

Amor pra recomeçar


Eu te desejo não parar tão cedo
Pois toda idade tem prazer e medo

E com os que erram feio e bastante
Que você consiga ser tolerante

Quando você ficar triste que seja por um dia
E não o ano inteiro
E que você descubra que rir é bom
Mas que rir de tudo é desespero

Desejo que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor pra recomeçar
Pra recomeçar

Eu te desejo muitos amigos
Mas que em um você possa confiar
E que tenha até inimigos
Pra você não deixar de duvidar

Quando você ficar triste que seja por um dia
E não o ano inteiro
E que você descubra que rir é bom
Mas que rir de tudo é desespero

Desejo que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor pra recomeçar
Pra recomeçar

Eu desejo que você ganhe dinheiro
Pois é preciso viver também
E que você diga a ele
Pelo menos uma vez
Quem é mesmo o dono de quem

Desejo que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor
Pra recomeçar

Eu desejo que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor pra recomeçar
Pra recomeçar
Pra recomeçar
.
Frejat

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Uma ninfa!


"Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhando. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
-Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
-Pronto!
-Estará bom?
-Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
-Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos."


Dom Casmurro, Machado de Assis.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A Borboleta Preta

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta (...), depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
— Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.
E esta reflexão, — uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, — me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas". A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.

Trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Os dois lados da janela

Trem das cores

A franja da encosta
Cor de laranja
Capim rosa chá
O mel desses olhos luz
Mel de cor ímpar
O ouro ainda não bem verde da serra
A prata do trem
A lua e a estrela
Anel de turquesa
Os átomos todos dançam
Madruga
Reluz neblina
Crianças cor de romã
Entram no vagão
O oliva da nuvem chumbo
Ficando
Pra trás da manhã
E a seda azul do papel
Que envolve a maçã
As casas tão verde e rosa
Que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela
E aquela num tom de azul
Quase inexistente, azul que não há
Azul que é pura memória de algum lugar
Teu cabelo preto
Explícito objeto
Castanhos lábios
Ou pra ser exato
Lábios cor de açaí
E aqui, trem das cores
Sábios projetos:
Tocar na central
E o céu de um azul
Celeste celestial

(Caetano Veloso)

Ouçam aqui.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Tudo passa


"É sabido como os nossos pensamentos, tanto os da inquietação como os do contentamento, e outros que nem são disto nem daquilo, acabam, mais tarde ou mais cedo, por cansar-se e aborrecer-se de si mesmos, é só questão de dar tempo ao tempo, é só deixá-los entregues ao preguiçoso devanear que lhes veio da natureza, não lançar na fogueira nenhuma reflexão nova, irritante ou polêmica, ter sobretudo, o supremo cuidado de não intervir de cada vez que diante de um pensamento já por si disposto a distrair-se se apresente uma bifurcação atrativa, um ramal, uma linha de desvio."


Todos os nomes, José Saramago.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Senhora




“Esse fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos; porque o coração, e ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral. Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos.
Suspeito eu porém que a explicação dessa singularidade já ficou assinalada. Aurélia amava mais seu amor do que seu amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem.
Quem não compreender a força desta razão, pergunte a si mesmo porque uns admiram as estrelas com os pés no chão, e outros levantados às grimpas curvam-se para apanhar as moedas no tapete.”

Trecho de “Senhora” José de Alencar

Annabel Lee


Annabel Lee
Edgar Allan Poe

Há muitos, muitos anos, existia
num reino à beira-mar, em que vivi,
uma donzela, de alta fidalguia,
chamada ANNABEL LEE.
Amava-me, e seu sonho consistia
em ter-me sempre para si.

Eu era criança, ela era uma criança
no reino beira-mar, em que vivi.
Mas tanto o nosso amor ultrapassava
o próprio amor, que até senti
os serafins celestes invejarem
a mim e a ANNABEL LEE.

Por isso mesmo, há muitos, muitos anos,
no reino à beira-mar, em que vivi,
gélido, de uma nuvem, veio um vento
matar ANNABEL LEE.
E seus nobres parentes se apressaram
em tirá-la de mim; encerrarem-na vi
num sepulcro bem junto ao mar, que chora
eternamente ali.


Foi inveja dos anjos: mais felizes
éramos nós aqui.
Sim, foi por isso (como todos sabem
no reino à beira-mar, em que a perdi)
que veio um vento, à noite, de uma nuvem
matar ANNABEL LEE.

Mas nosso amor, imenso, era mais forte
do que o tempo e que a morte,
do que a própria esperança em que o envolvi.
E nem anjos celestes nas alturas
nem demônios dos mares abissais
jamais minha alma afastarão, jamais,
da bela ANNABEL LEE.

Pois, quando surge a lua, em meus sonhos flutua,
no luar, ANNABEL LEE.
E, quando se ergue a estrela, o seu fulgor revela
o olhar de ANNABEL LEE.
E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira,
junto àquela que adoro, a esposa, a companheira,
na tumba,à beira-mar, do reino em que vivi,
junto ao mar que por ti
soluça eternamente, ANNABEL LEE.

Tarde demais


"Até hoje ainda não sei como aconteceu. Em um instante estávamos conversando, no seguinte, ela inclinou-se sobre mim. Por um segundo, quis saber se o beijo quebraria o feitiço que nos envolvia, mas já era tarde demais para parar. Quando os lábios dela tocaram os meus, soubre que poderia viver cem anos e visitar o mundo todo e nada se compararia ao momento único em que beijei a mulher dos meus sonhos e soube que meu amor duraria para sempre."


Querido John, Nicholas Sparks.

Mulher inteligente


“A mulher inteligente não é escrava dos caprichos dos costureiros, dos cabeleireiros e dos fabricantes de cosméticos. Antes de adotar a última palavra da moda, ela estuda o efeito da mesma sobre seu tipo. A mulher inteligente sabe que mais importante que parecer “chique” é parecer bonita. (…) Raciocinem, estudem a si próprias, em detalhes, lembrem-se de o que fica bem a uma Elizabeth Taylor, miúda e frágil, ficaria ridículo em Sophia Loren. No entanto, ambas são lindíssimas.”


Clarice Lispector em sua coluna do jornal Correio da Manhã, década de 1950.

sábado, 23 de outubro de 2010

Mais de Clarice!


"Agora subitamente compreendia que o amor podia fazer com que se desejasse o momento que vem num impulso que era a vida... — Sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doía-lhe o corpo como se nele suportasse a feminilidade de todas as mulheres."
Trecho de Perto do Coração Selvagem de Clarice Lispector


Se eu pudesse pôr o tempo a pisar as sua próprias pegadas..


"Se eu pudesse voltar no tempo, retroceder todos
esses anos, sofrer tudo o que sofri, nem que fosse para vê-lo por um único
instante, como o vi pela primeira vez, parado em frente à nossa casa,
naquela tarde morna e plácida de outubro, os cabelos fulvos e inquietos
cintilando ao sol do pampa, se eu pudesse pôr o tempo a pisar as suas
próprias pegadas, eu não hesitaria..."


Trecho de A casa das sete mulheres de Letícia Wierzchowski

Metade



Metade

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
Mas a outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é a platéia
A outra metade é a canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

Composição: Oswaldo Montenegro

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Descuidar


"Felicidade se acha é em horinhas de descuido"

Guimarães Rosa

talvez seja a grande resposta...


Limite Branco
"Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar. A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: "Achei! Achei!", mas ele escorrega, se espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça. A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê.
Cada um que surge parece o último. Mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas. E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano. Um dia a gente chega na frente do espelho e descobre: "Envelheci." Então a busca termina. As perguntas calam no fundo da garganta, e vem a morte. Que talvez seja a grande resposta. A única."
(Caio Fernando de Abreu)

Que seja ele mesmo a ver!


"- É preciso falar do que se passa hoje, porque do futuro não sabemos nada. Quando o povo for livre, ele próprio verá o que será melhor fazer. Meteram-lhe na cabeça muitas coisas que ele não queria. Basta! Que seja ele mesmo a ver! Talvez ele queira reijeitar tudo, toda a vida, todas as ciências; talvez veja que tudo está apontado contra ele, como, por exemplo, o Deus da Igreja. Tendes apenas que lhe meter os livros nas mãos e ele próprio encontrará a resposta. Aqui está."





trecho de A mãe de Maximo Gorki

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Besteira é não seguir o coração

A depender de mim

A depender de mim
Os psicanalistas estão fritos
Eu mesmo é que resolvo os meus conflitos
Com aspirina amor ou com cachaça
Os gritos todos virarão fumaça
A dor é coisa que dói e que passa
Curar feridas só o tempo há de
Toda regra para o bem da humanidade
É certo necessita de exceção

A depender de mim
Os publicitários viram bolhas
Eu sei como fazer minhas escolhas
E assumir os erros que lá vem
Se a alma finca pé os medos somem
Menino nunca deixe que te domem
Meu pai dizia o verdadeiro homem
Sabe o que quer ainda que não queira
Besteira é não seguir o coração

A depender de mim
Os padres e pastores serão tristes
Eu penso mesmo que deus não existe
E ainda assim quem sabe eu creia em deus
Se deus é o outro nome da verdade
Deste momento até a eternidade
Eu o levo entre mentiras e trapaças
Besta felicidade frágil farsa
Do que preciso riso preces e paixão

(Zeca Baleiro)

Ouçam aqui!

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Serena


Acalanto Para Helena

"Dorme minha pequena
Não vale a pena despertar
Eu vou sair
Por aí afora
Atrás da aurora
Mais serena "

Chico Buarque

E acabarão por amar o mundo inteiro!



“não temam o pecado, amem o homem mesmo no pecado, é isso a imagem do amor divino, um amor como não há maior na terra. Amem toda a criação no seu conjunto e nos seus elementos, cada folha, cada raio de luz, os animais, as plantas. Amando cada coisa, compreenderão o mistério divino nas coisas. Tendo-o compreendido uma vez, vocês o conhecerão sempre mais, a cada dia. E acabarão por amar o mundo inteiro com um amor universal... o amor é mestre, mas é preciso saber adquiri-lo, porque se adquire dificilmente, ao preço de um esforço prolongado; é preciso amar de fato, não por um instante, mas até o fim. Qualquer um, até mesmo um celerado, é capaz de um amor fortuito.”

Trecho do livro “Os irmãos Karamazov” de Dostoiévski


A vida não é como ela devia ser?

" ... Então é assim, Pavel, pensas que a vida não é como devia ser?


Pavel levantou-se e pôs-se a andar na sala, as mãos atrás das costas.

- Não, ela vai bem. Veja, ela trouxe-o aqui de coração aberto. Ela vai-nos unindo pouco a pouco, a nós que trabalhamos por toda a nossa existência. Virá o tempo em que ela nos unirá a todos! Para nós, ela é injusta, dura, mas abre-nos os olhos, descobre-nos o seu sentido amargo, é ela quem ensina ao homem como deve acelerar a marcha."




Trecho de A mãe de Maximo Gorki

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Chega voando


"Quando tuas mãos saem,amada,

para as minhas,o que me trazem voando?

Por que se detiveramem minha boca, súbitas,

e por que as reconheço como se outrora então

as tivesse tocado,como se antes de ser

houvessem percorrido minha fronte e a cintura?

Sua maciez chegava voando por sobre o tempo,

sobre o mar, sobre o fumo,e sobre a primavera,

e quando colocaste tuas mãos em meu peito,

reconheci essas asas de paloma dourada,

reconheci essa argila e a cor suave do trigo.

A minha vida toda eu andei procurando-as.

Subi muitas escadas,cruzei os recifes,

os trens me transportaram,as águas me trouxeram,

e na pele das uvas achei que te tocava.

De repente a madeirame trouxe o teu contacto,

a amêndoa me anunciava suavidades secretas,

até que as tuas mãos envolveram meu peito

e ali como duas asas repousaram da viagem"


Tuas mãos, Pablo Neruda

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Estandarte da agonia

VAMPIRO

Eu uso óculos escuros pras minhas lágrimas esconder
E quando você vem para o meu lado, ai, as lágrimas começam a correr
E eu sinto aquela coisa no meu peito, eu sinto aquela grande confusão
Eu sei que eu sou um vampiro que nunca vai ter paz no coração

Às vezes eu fico pensando porque é que eu faço as coisas assim
E a noite de verão ela vai passando, com aquele seu cheiro louco de jasmim
E eu fico embriagado de você, eu fico embriagado de paixão
No meu corpo o sangue não corre, não... corre fogo e lava de vulcão

Eu fiz uma canção cantando todo o amor que eu sinto por você
Você ficava escutando impassível e eu cantando do teu lado a morrer
E ainda teve a cara de pau de dizer naquele tom tão educado:
"Oh! Pero que letra más hermosa, que habla de un corazón apasionado"

Por isso é que eu sou um vampiro e com meu cavalo negro eu apronto
E vou sugando o sangue dos meninos e das meninas que eu encontro
Por isso é bom não se aproximar muito perto dos meus olhos
Senão eu te dou uma mordida que deixa na sua carne aquela ferida

Na minha boca eu sinto a saliva que já secou
De tanto esperar aquele beijo, ai, aquele beijo que nunca chegou
Você é uma loucura em minha vida, você é uma navalha para os meus olhos
Você é o estandarte da agonia que tem a lua e o sol do meio-dia

(Jorge Mautner)

Ouça aqui na voz de Caetano Veloso.
Paixão


De beijar, cada um tem um gosto, e é capaz:
este prefere as mãos, o outro, os seios, a boca;
porém entre este e aquele a diferença é pouca,
não são deuses, bem vês - são homens, nada mais.

Ah, poder encontrar esse Alguém superior
que algo divino traz, e o peito é uma couraça,
esse homem cuja chama abrase-te de amor
e te sintas morrer, como ao vento, a fumaça.

A mão que sobre ti pousando, grave, calma,
faça nobre teu ser, generosa tua alma,
tua mente o mais rico e profundo dos poços;

e esse alto e claro olhar que toda te ilumine
e te aqueça, e te envolva, e te abrase e calcine
até a seca raiz dos teus pálidos ossos!


Alfonsina Storni

Como o sol que ela via no céu


"Esta fé infantil, mas inquebrantável, manifestava-se cada vez mais no pequeno grupo e com crescente força. E quando a mãe via esse transbordamento de esperanças, sentia institivamente que , na verdade, qualquer coisa de grande e de radioso nascera no mundo, como o sol que ela via no céu."

trecho de A mãe de Maximo Gorki

sábado, 16 de outubro de 2010

Mas hoje eu sei...


Tudo Passa


Chove lá fora e eu não tenho mais você
Quanta vontade de te ver
Saudade é a tempestade que fecha o verão
É o ultimo suspiro da paixão

Mas hoje eu sei
Que volta sempre o sol
E o escuro da noite vai clarear
E anunciar um novo amor

O tempo passa e com ele passa a dor
Pois tudo passa até o amor
Na companhia de um bom livro e um violão
Vou vivendo com a minha solidão

Mas hoje eu sei
Que volta sempre o sol
E o escuro da noite vai clarear
E anunciar um novo amor


Música cantada por Marjorie Estiano e composição de Alexandre Castilho e Renato Icarahi

É quando o amor não basta


É Quando o Amor Não Basta



É de manhã, vou-me embora,
mas não é para Pasárgada,
que aliás não existe mais.
Nem para a grande pescaria noturna
nas águas barrentas do Paraquequara.
Não vou partir para a guerra,
nem para a crista da serra.
Não vou para a boca azul
nem para a curva dos joelhos
que vi, e estremeci, era verão,
na margem esquerda do Reno.
Não vou para onde devo e quero,
no chão amado da infância,
lá onde tenho um lugar.
Sobretudo não vou, perdeu-se o rumo,
para o espesso aroma noturno,
espessa relva estrelada
que te subia do amor.

Vou-me embora desta esplanada de canções,
do reino desta menina que é dona do arco-íris,
vou-me embora desta cozinha
onde inventei guisados
em que não o orégano nem a noz-moscada,
mas a ternura, a velha ternura humana,
foi sempre o melhor tempero.

É porque o amor somente não basta
para cravar na rocha o sortilégio
da límpida alegria do convívio,
que é o chão e a flor do entendimento humano.

Ainda não sei nem me importa para onde vou.
Vou porque é preciso.
Porque ficar ficou feio,
porque já não estamos mais.
Porque faz tempo que tu já te fostes.

Vou-me embora, vou levando
o espanto dentro da paz.
E amargamente sabendo
que dessa roseira, rosa
não vai nascer nunca mais.


Thiago de Mello – Santiago, 1972

Felizes como crianças; riam...


"Por vezes, ficava surpreendida com os acessos de alegria, extraordinária e comunicativa, que se apossava repentinamente dos jovens. Normalmente, isso acontecia nas noites em que liam nos jornais notícias a respeito de trabalhadores estrangeiros. Então todos aqueles olhos brilhavam de alegria, todos se tornavam, coisa estranha, felizes como crianças; riam, com um riso límpido e jovial, davam pancadas amigáveis nos ombros uns dos outros."




trecho de "A mãe" de Máximo Gorki

A casa das sete mulheres



“Eu amava Giuseppe Garibaldi desde muito antes de conhecê-lo, na tarde em que nos chegou com suas falas enroladas e seus modos corteses e alegres; eu já o amava desde que o pressentira, no começo de tudo, naquela primeira noite de 1835, ainda na varanda de minha casa, num arremedo de futuro que meus olhos tinham podido captar por graça de algum bom espírito. Mas como falar desse homem? Como contar dessa criatura ao lado de quem vivi os melhores instantes dessa minha existência, e por quem até hoje espero e anseio, a cada instante, a cada noite, no frescor de cada alvorada, de quem sinto o tênue perfume entre as fronhas do meu travesseiro, nos velhos vestidos daquele tempo, até mesmo nas tranças de meus cabelos desbotados?
Vivi por Giuseppe Garibaldi como muito poucas mulheres viveram por um homem, um homem que nunca foi de todo meu, mas de quem pude compreender a essência — era um cometa, uma estrela cadente —, justo que restasse tão pouco ao meu lado. Era um ser sem paradeiro, e se não segui com ele, foi unicamente porque a vida não o quis. Hoje, passados todos esses anos, quando, ao me olhar no espelho, já nem reconheço mais a Manuela que fui naqueles tempos, hoje ainda o amo com a mesma força e a mesma dedicação. Ele não voltou para mim, mesmo depois de ter ficado sozinho e com dois filhos nos braços, porque é como um pássaro, teve sempre a necessidade de migrar, de seguir o verão dos seus sonhos, mas me levou consigo em algum lugar de sua alma, eu sei.”

Trecho do livro A casa das sete mulheres de Letícia Wierzchowski

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

(docemente pornográficos)

Em face dos últimos acontecimentos
Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
que o nosso avô português?

Oh! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.

A tarde pode ser triste
e as mulheres podem doer
como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).

Teus amigos estão sorrindo
de tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
que o melhor é ser pornográfico.

Propõe isso ao teu vizinho,
ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas
que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos
e à mulher da trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos,
não quereis ser pornográficos?

Carlos Drummond de Andrade

E o chão que ela pisa se enche de flor

A mulher que eu amo
Roberto Carlos
.
A mulher que eu amo
Tem a pele morena
É bonita, é pequena
E me ama também

A mulher que eu amo
Tem tudo que eu quero
E até mais do que espero
Encontrar em alguém

A mulher que eu amo
Tem um lindo sorriso
É tudo que eu preciso
Pra minha alegria

A mulher que eu amo
Tem nos olhos a calma
Ilumina minha alma
É o sol do meu dia

Tem a luz das estrelas
E a beleza da flor
Ela é minha vida
Ela é o meu amor

A mulher que eu amo
É o ar que eu respiro
E nela eu me inspiro
Pra falar de amor

Quando vem pra mim
É suave como a brisa
E o chão que ela pisa
Se enche de flor

A mulher que eu amo
Enfeita a minha vida
Meus sonhos realiza
Me faz tanto bem

Seu amor é pra mim
O que há de mais lindo
Se ela está sorrindo
Eu sorrio também

Tudo nela é bonito
Tudo nela é verdade
E com ela eu acredito
Na felicidade

Tudo nela é bonito
Tudo nela é verdade
E com ela eu acredito
Na felicidade
.
*Para ouvir, clique aqui.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Mending


My love, leave yourself behind

Beat inside me

Leave you blind

My love you are for peace

You were so trying for release

You gave it allInto the call

You took a chance and

You took a fall for us

You came thought fully

And then faithfully

You taught me honor

You did it for me

Tonight you will sleep for good

You will wait

For me my love

Now I am strong

You gave me all

you gave all you had

And now I am home

My love, leave yourself behind

Beat inside me

Leave you blind

My love, look what you can do

I am mending

I'll be with you

You took my hand

Added a plan

You gave me your heart

I asked you to dance with me

You loved honestly

Did what you could release

I know you're pleased to go

I won't relieve this love

Now I am strong

You gave me all

You gave all you had

And now I am home

My love, leave yourself behind

Beat inside meI'll be with you


My Love, Sia

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Milágrimas



Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema, dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério, deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa, coma somente a cereja
Jogue para cima, faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas, viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena, reze um terço
Caia fora do contexto, invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal, do sal, do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas, três, dez, cem, mil lágrimas
sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre
A cada milágrimas



(Alice Ruiz)

Mulher


Assim eu vejo a vida
A vida tem duas faces:

Positiva e negativa

O passado foi duro mas deixou o seu legado

Saber viver é a grande sabedoria

Que eu possa dignificar

Minha condição de mulher,

Aceitar suas limitações

E me fazer pedra de segurança dos valores que vão desmoronando.

Nasci em tempos rudes

Aceitei contradições lutas e pedras

como lições de vida e delas me sirvo

Aprendi a viver.

Cora Coralina

domingo, 10 de outubro de 2010

MÃOS DADAS




Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.


Estou preso à vida e olho meus companheiros.


Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.


Entre eles, considero a enorme realidade.


O presente é tão grande, não nos afastemos.


Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.




Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,


não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,


não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.


O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,




a vida presente.






Carlos Drummond de Andrade

sábado, 9 de outubro de 2010

O verdadeiro aprendizado.


"Não me deixe viver o que posso, que me seja permitido desaprender os limites."

Fabrício Carpinejar. 

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Livro místico

Elegia

Deixa que minha mão errante adentre
atrás, na frente, em cima, em baixo, entre

Minha América, minha terra à vista
Reino de paz se um homem só a conquista

Minha mina preciosa, meu império
Feliz de quem penetre o teu mistério

Liberto-me ficando teu escravo
Onde cai minha mão, meu selo gravo

Nudez total: todo prazer provém do corpo
(Como a alma sem corpo) sem vestes

Como encadernação vistosa
Feita para iletrados, a mulher se enfeita

Mas ela é um livro místico e somente
A alguns a que tal graça se consente
É dado lê-la

Eu sou um que sabe...

A música é de Péricles Cavalcanti, que traduziu conjuntamente com Augusto de Campos o poema de John Donne ("Elegy XIX - To His Mistress Going to Bed").
Ouçam na voz de Caetano Veloso aqui.

Mal d'alma

A raiva e a traição eram uma constante na relação entre as pessoas. Esse sentimento era tão amplo e enraizado quanto o incurável cansaço de seus músculos. Elas nasciam com esse mal d'alma, herdando-o de seus pais, que, com sua sombra negra, acompanhava-as até o túmulo, induzindo-as a praticar atos repulsivos, por sua crueldade sem sentido.
.
Trecho de A Mãe, de Máximo Gorki.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Os olhos cheios de cores

Alegria, alegria

Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou...
Por que não? Por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou...

Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou...

Por que não? Por que não?


(Caetano Veloso)

Ouçam - e vejam - nesse vídeo emocionante de 1967.

A mesa e a cama

Gula e luxúria, que tantas loucuras nos fazem cometer, têm a mesma origem: o instinto de sobrevivência. O vínculo entre a comida e o prazer sexual é a primeira coisa que aprendemos ao nascer. A sensação do bebê preso ao peito, imerso no calor e no cheiro da mãe, é puramente erótica e deixa uma marca indelével para o resto da vida. Da lactância até a morte, a comida e o sexo têm a mesma garra. Na maturidade, quando digerir e fazer amor se transformam em tarefas, a mente afasta-se a contragosto da mesa e da cama; mas há alguns seres capazes de chegar até o último dia de uma longa e frutífera existência com o mesmo apetite pelos prazeres terrenos da juventude. [...] Será que existe uma relação entre criatividade e erotismo? Espero que sim. O profundo regozijo que sinto, depois de comer bem e de fazer amor amando, reflete-se invariavelmente em meu trabalho, como se o corpo, agradecido, destinasse o melhor de sua energia a dar asas à escrita. Não sei o que acontece com os homens, mas com as mulheres nenhum afrodisíaco tem serventia sem o ingrediente indispensável da simpatia que, em seu estado de perfeição, é o amor.

Trecho do livro Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos, de Isabel Allende.

Ideias


"Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias."


Mário Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura 2010.