quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Doce patologia



"A relação dos homens com os livros, em particular a dos bibliófilos, aqueles que por eles se apaixonam, passa por três estágios. Primeiro, os homens pensam que conseguirão ler um número de livros maior do que de fato é possível. Num segundo estágio, consequência imediata do primeiro, passam a desejar ter em mãos o maior número possível de obras dos autores de quem gostam. Num terceiro momento, já siderados, surgem o interesse pelas primeiras edições, geralmente raras, e a atração pelo livro como objeto de arte. Esta última fase é definida pelo mais célebre bibliófilo brasileiro, o empresário paulista José Mindlin, como perdição. “Quando se chega a esse estágio, aquele que pensava em ser na vida apenas um leitor metódico está irremediavelmente perdido”, confessa Mindlin. A patologia – doce patologia – está instalada em definitivo."

“Paixão e perdição“
Texto de José Castello, para ISTO É.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Encurtar

Uma barbatana do espartilho de Nívea quebrou-se, cravando-se-lhe uma ponta entre as costelas. Sentia-se sufocar dentro do vestido de veludo azul, a gola de renda demasiado alta, as mangas muito estreitas, a cintura tão apertada, que, quando tirava o sinto, passava uma boa meia hora sentindo convulsões na barriga até as tripas se acomodarem em sua posição normal. Muitas vezes, ela e as amigas sufragistas haviam discutido o assunto, chegando à conclusão de que, enquanto as mulheres não encurtassem as saias e os cabelos e não despissem as anáguas, pouco importava que pudessem estudar medicina ou tivessem direito a voto, porque de fato não se animariam a fazê-lo, embora ela mesma não mostrasse coragem para ser uma das primeiras a abandonar a moda.

Isabel Allende, A casa dos espíritos.

Para a vida



"Clarice, eu não leio você para a literatura, mas para a vida".

Guimarães Rosa para Clarice Lispector.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Não há vagas













Operários. Tarsila do Amaral.


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar

Sem palavras

Exegese

Interpreto o teu corpo,
descerro a castanha do metacarpo
em flor, tempestade e sensação.

Ouço o martelar dos cascos
sobre o zinco da vontade.

Sinceramente, estou morto.

Poeta -

o que não tem palavras.

Eduardo Sterzi, In: Prosa.

Seiva


Raiz

cansei de flores e caules
folhas e galhos
frutas e cascas
- eu quis -

agora
quero
raiz
(e ad
jacências)

o sumo da seiva da essência

Eduardo Sterzi. In: Prosa

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A resposta



"Resposta, só aquela que a vida costuma dar a todas as questões complexas e insolúveis: viver o dia-a-dia, isto é, divertir-se."

Anna Karênina, Tolstói.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Goiabada com queijo

"As pancadas ela esquecia, pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida."

Trecho de A Hora da Estrela, Clarice Lispector

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Tão azul

"Quando setembro vier, de tão azul, o céu parecerá pintado"
Caio F. Abreu

União

o que advém do texto é a construção da frase;

o que advém do espaço é o seu sentido;
o que advém da manhã é o sentimento de perca;
o que advém da noite é o recomeço da frase interrompida;
assim cogitando caminhava

e abri a porta que dava para o teu rosto legente;

Não disse nada, a ouvir teus olhos
o som da rua que entrava pelas janelas.

Sentei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei por ele
___uniu-se a mim como o oxigénio e o hidrogénio
se unem em forma de água,
numa união tão rara, imponderável e banal
como os nossos corpos unidos a ler ___

votaremos à imagem da água.

Maria Gabriela Llansol, Onde Vais Drama-Poesia?

Sem sossego

"A literatura é uma atividade sem sossego." Antonio Candido

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O impulso



"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada “impulso vital”. Pois esse impulso é, às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito [...] "
Caio F. Abreu

Singing in the Rain



Cena clássica do filme Cantando na Chuva, com Gene Kelly.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Agosto



"Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro- e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco.É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente”.
Caio Fernando Abreu

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Gratidão

"I thank You God for most this amazing day: for the leaping greenly spirits of trees and a blue true dream of sky; and for everything which is natural which is infinite which is yes."
E.E. Cummings

sábado, 13 de agosto de 2011

Isabel Allende – A Casa dos Espíritos

Quanto vive o homem, afinal?
Vive mil anos ou um só?
Vive uma semana ou vários séculos?
Por quanto tempo morre o homem?
O que significa para sempre?

Pablo Neruda


"A Casa dos Espíritos nasceu no dia em que quis contar uma anedota de minha tia Rosa e um de meus filhos protestou: 'Ora, mamãe, chega de velhas histórias.'

Quando eu era criança, ouvia as histórias de minha mãe, de minhas tias, de minha avó, e as entesourava na memória: existia a tradição oral.
No exílio, tudo isto acaba.
Por isso quis escrever este romance.
A sua última parte corresponde ao Chile da repressão. Tudo que se conta ali é rigorosamente verdadeiro e procede de reportagens que eu mesma realizei. O tamanho das celas, a comida dos presos, tudo é verídico."


Isabel Allende







quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Canções do Brasil

Queridas amigas literatas e estimados leitores,

Há muito tínhamos uma seção aqui em nosso Clube das Literatas denominada 'Eu indico' onde eu, uma vez por semana, lhes apresentava uma série de canções com um tema específico. Já falamos de vozes femininas, de canções que nos marcaram em filmes, das inesquecíveis melodias brasileiras e das contribuições musicais estrangeiras de diversas partes do globo,   além, é claro, das canções repletas de história e dos homens e mulheres que fazem história no mundo da música... Afinal, há quem possa dizer que a música não se confirme como uma das manifestações artísticas e mesmo literárias mais deliciosas que nos podem ser apresentadas? 

Este é e sempre foi uma das minhas postagens preferidas, pois podemos explorar um pouquinho mais esse universo musical numa esfera, por que não, literária. Bom, e dessa vez, resolvi me aventurar nas canções que falam sobre o nosso maravilhoso Brasil. Temos as versões críticas, temos versões que exaltam nossa nação, clássicos e contemporâneos. Fato é que falar da realidade de nosso país é algo absolutamente necessário, e cada canção nos mostra a perspectiva de um brasileiro diferente ( ou por que não dizer, de um grupo?). Não basta dizer que nossos músicos são verdadeiros poetas, mas também é preciso (re)afirmar que muitos estão a altura dos poemas que foram escritos em homenagem ou insatisfação às terras brasileiras. Para representar cada uma das minhas escolhas, resolvi acompanhar as canções com telas de nossos pintores, para encher esta postagem de arte brasileira. Espero que gostem da viagem por nosso território. Eu, então, indico...

Nossa quinta posição é composta apenas de melodia. Mas quem se atreveria a dizer que o chorinho de Waldir Azevedo não representa a brasilidade e a poesia na alma de qualquer um que habite este país de dimensões continentais? Composta em 1947, a canção Brasileirinho já foi apreciada nos quatro cantos do mundo, pelas mãos de seu criador e de tantos outros brasileiros. Ouçam aqui


O abaporu, de Tarsila do Amaral. 


E quem é que não pensa no nosso litoral magnífico quando escuta aquele violãozinho doce, o toque do piano e uma das frases mais graciosas da nossa música? "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina, que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar..." Nossa quarta posição é ocupada por nada mais, nada menos que esta belíssima composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, de 1962. Muitos dizem que esta é a canção que define a imagem da mulher brasileira, enquanto outros afirmam que é o desenho perfeito da mulher carioca. Por um motivo ou pelo outro, a canção Garota de Ipanema é parte indissolúvel do imaginário brasileiro. Ouçam aqui

Mulher e criança, de Cândido Portinari.




Chegando ao nosso pódio, temos a terceira posição. Chegamos aos anos 1980, uma época de muitos protestos políticos, o nosso país saindo de um regime militar de vinte anos. Muitos desses protestos se fizeram na música, com as bandas de rock nacional. Fosse no movimento dos caras pintadas, fosse entoando canções, agora não era um momento de exaltar as belezas paradisíacas do país, e sim da podridão do cenário de corrupção e opressão. Escolhi, portanto, uma das composições de Cazuza e George Israel, a conhecida canção Brasil, que incita que "mostre a sua cara". Ouçam aqui, na voz de Paula Toller. 




Serenata, de Di Cavalcanti. 


Em nossa segunda posição, em 1987, temos a composição famosa de Renato Russo em sua banda Legião Urbana, uma das que mais representou a crítica a política, economia e desigualdade social em nosso cenário musical. Em poucas linhas, Renato questiona a realidade da história brasileira desde seus primórdios até a situação infeliz vivida no Congresso Nacional. E com a pergunta "Que país é este?", movimentou a juventude dos anos oitenta e outros grupos da mesma época fizeram o mesmo, como foi o caso do Capital Inicial e dos Paralamas do Sucesso. E, até hoje, entoamos esta canção com o mesmo propósito.  Ouçam aqui


Retirantes, de Cândido Portinari.




Na nossa primeira posição, outra das melodias mais deliciosas da nossa cultura. Quem nunca arriscou uns passinhos de samba quando escutou essa composição de Ary Barroso, de 1939? Era uma época de guerras no mundo, e talvez por isso mesmo houvesse a necessidade de enxergarmos algo de bonito a nossa volta... Embora, hoje, seja conhecida como um dos retratos mais belos do Brasil, esta canção não fez muito sucesso em seus primeiros anos nas paradas musicais... Contudo, em 1942, quando do lançamento de uma animação da Disney Pictures, com a presença de Zé Carioca e Pato Donald, o sucesso carnavalesco se propagou mundo afora... Ao assistir ao vídeo, percebemos a clara alusão que seria suscitada, anos depois pelo lançamento da animação Rio. Estamos falando de Aquarela do Brasil... com seus  conhecidos versinhos... "Brasil, meu Brasil brasileiro... meu mulato inzoneiro... Vou cantar-te nos meus versos". Confira, aqui, a canção no vídeo da Disney.  

Vendedor de frutas, de Tarsila do Amaral. 


Assim, encerramos o "Eu indico" desta semana. Com as faces mais diversas do nosso Brasil.
E para nos despedirmos em clima literário,  uns trechinhos da Canção do exílio, de Gonçalves Dias, e de suas respectivas versões repaginadas por outros escritores... Assim como na música, na poesia o nosso país também é percebido em variadas perspectivas, basta escolher a sua, ou dosar as existentes. 


"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá,
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá (...)

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras 
Onde canta o sabiá"

(Trecho de Canção do Exílio, de Gonçalves Dias)



"Um sabiá na palmeira, longe.
Estas aves cantam um outro canto.
O céu cintila sobre flores úmidas.
Vozes na mata, e o maior amor.
Só, na noite,
seria feliz: um sabiá, na palmeira, longe.
Onde é tudo belo e fantástico, só, na noite, seria feliz.
(Um sabiá, na palmeira, longe.)
Ainda um grito de vida e voltar para onde tudo é belo e fantástico: a palmeira, o sabiá, o longe."


(Nova Canção do Exílio, de Carlos Drummond de Andrade)


" (...)Também adoro as palmeiras
Onde canta o curió
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.
Finalmente, aqui na Dinda,
Sou tratado a pão-de-ló
Só faltava envolver tudo
Numa nuvem de ouro em pó.
E depois de ser cuidado
Pelo PC com xodó,
não permita Deus que eu tenha de voltar pra Maceió."

(Trecho de Canção do exílio às avessas, de Jô Soares)


Até a próxima!

o principal ruído


As mangueiras
o telhado velho
o pátio branco
as sombras da tarde cansada
até o fantasma da judia rica
tudo esta à espera do romance começado

um dia sobre os tijolos soltos
a cadeira de balanço será o principal ruído
as mangueiras
o telhado
o pátio
as sombras
o fantasma da moça
tudo ouvirá em silêncio o ruído pequeno.


Gilberto Freyre

Favores



" Poucos dias antes de voltar para casa, Tibério Vacariano foi por puro acaso apresentado a um jovem industrial chinês, recém-chegado dos Estados Unidos, um certo Mr. Chang Ling, que ele passou logo a chamar de "seu Jango Lins". Tratava-se de um dos muitos homens de negócios que tinham conseguido fugir de Xangai antes de esta cidade cair em poder dos comunistas. Trouxera consigo a família, os seus móveis mais preciosos, uma carta de crédito ( possuía no Chase Manhattan Bank de Nova York uma conta pessoal com um apreciável saldo credor) e o seu know-how. Queria instalar no Brasil uma fábrica de óleos comestíveis de soja e amendoim.

Mal viu na sua frente aquele homem franzino, baixo e amarelento - Tibério teve uma inspiração e convidou-o para almoçar no Bife de Ouro, juntamente com o seu intérprete, um rapaz brasileiro que sabia inglês, e que andava pajeando Mr. Ling através do emaranhado da selva carioca.

O primeiro prato não havia sido ainda servido e já o Cel. Vacariano, voltando-se para o intérprete, pedia:

- Diga aí pro seu Lins que descobri o lugar ideal para a fábrica dele.

A tradução foi feita. O chinês sorriu e quis saber onde era.

- Conta pro moço - continuou o Cel. Tibério - que sou meio dono duma cidade do Rio Grande do Sul que tem nome de estrela (ouvi dizer que chinês gosta muito de estrela) nas barrancas do rio Uruguai, justamente na zona da soja.

Fez uma pausa para que o intérprete traduzisse as suas palavras para aquela língua bárbara. O chinês continuava a sorrir.

- Diga a ele também que sou plantador de soja, e da boa! E se ele quiser estabelecer o negócio dele em Antares, eu arrumo tudo: o terreno para a fábrica. material de construção a preço baixo e mais ainda:cinco anos de isenção de impostos municipais! O prefeito da cidade é meu sobrinho e eu tenho na mão a Câmara de Vereadores.

O chinês escutou, sacudindo de quando em quando a cabeça, a enumeração de todas as promessas e depois disse algo em voz baixa ao intérprete, que se voltou para o maioral de Antares:

- Mister Ling quer saber das suas condições.

- As minhas condições? Ora, quero apenas contribuir para o progresso industrial da minha cidade, que diabo!

Na realidade pretendia fazer o chim assinar oportunamente um compromisso de compra de toda a sua safra anual de soja, esperava vender-lhe um de seus próprios terrenos para construção do edifício da fábrica e, se possível, ainda por cima ganhar de presente algumas ações da companhia, em troca de todos esses favores."

Incidente em Antares, Érico Veríssimo.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Poderia ter sido feliz

Ela estava humilhada e ferida; e se arrependia, embora não soubesse de quê. Desejava a estima dele quando não tinha mais esperança de recebê-la. Queria notícias dele, quando não havia a menor chance de que lhe escrevesse. Estava convencida de que poderia ter sido feliz com ele, agora que não havia mais probabilidade de encontrá-lo.
Que triunfo pra ele, ela pensava com frequência, se soubesse que a proposta que ela rejeitara tão orgulhosamente havia apenas quatro meses seria recebida agora com alegria e gratidão! Era tão generoso, ela não duvidava, quanto o mais generoso dos homens. Mas, como um simples mortal, sentiria triunfo.

Orgulho e preconceito, Jane Austen.

As velhas estruturas

" - Precisa compreender, homem, que os tempos mudaram. - E, num tom quase colegial lendo um editorial de jornal, acrescentou: - É preciso reformar as velhas estruturas chamadas democráticas liberais. O Getúlio compreendeu a coisa. Somos um país subdesenvolvido de analfabetos e indolentes. É indispensável unificar e organizar a nação com punho de ferro. Vê o caso da Itália... O Mussolini acabou com a anarquia, implantando a ordem e o respeito à autoridade, e os tres já partem e chegam dentro do horário.
- Não sabia que tinhas aderido ao fascismo - sorriu Zózimo.

- Qual fascismo qual nada!Sou um realista e como tal simpatizo com os regimes autoritários. Sempre simpatizei, tu sabes.

- Mesmo not empo do doutor Borges de Medeiros?

- Ó homem, estamos na era do avião e do rádio e tu me vens com o borgismo!Naquela época eu era pouco mais que um rapazola inexperiente. E, se me meti na revolução de 23, foi só para seguir meu velho pai. Mas não desconverses. O Hitler reergueu a Alemanha, aboliu todos os partidos (menos o dele, naturalmente), botou pra fora do país os judeus, que, como se sabe, são os culpados dessas guerras e intrigas políticas e financeiras internacionais, homens gananciosos e sem pátria.

- Também não sabia que tinhas virado racista.

- Racista, eu? Ora, não sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos duma negramina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de ódio racional nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja e lhe digo que no Brasil a gente, graças a Deus, não tem esses problemas, pois aqui o negro conhece o seu lugar".

Incidente em Antares, Érico Veríssimo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011


Gratidão

Elizabeth pensou mais em Pemberley naquela noite do que na precedente. E, embora as horas lhe parecessem difíceis de passar, não foram suficientes para que chegasse a uma conclusão acerca dos seus sentimentos. E ficou duas horas acordada, tentando ler no próprio coração. Certamente não o odiava. Não, o ódio há muito se dissipara e há muito também que se envergonhava de ter antipatizado com ele. O respeito que as suas valiosas qualidades lhe inspiravam, embora a princípio admitido com relutância, já há longo tempo cessara de ser repugnante para os seus sentimentos. Agora se transformava num sentimento mais cordial, graças aos testemunhos tão altamente a seu favor, e à impressão favorável que Darcy lhe produzira na véspera. Mas, acima de tudo, acima do respeito e da estima, encontrava em si mesma um motivo de boa vontade que seria impossível desprezar: era a gratidão. Gratidão não somente porque ele a amara, mas porque ainda a amava bastante para esquecer toda a acrimônia e petulância com que ela o rejeitara e todas as acusações injustas com que acompanhara essa rejeição. Estivera persuadida de que Darcy a evitaria como a maior inimiga. E, no entanto, durante aquele encontro acidental mostrara-se ansioso por restabelecer as relações, sem qualquer exibição indelicada de sentimentos ou qualquer excentricidade de maneiras, no seu modo de tratá-la a sós. Procurava também a boa opinião dos amigos de Elizabeth e insistira para apresentá-la à irmã. Tal mudança num homem tão orgulhoso produzia não somente espanto, mas gratidão. Pois só podia ser atribuída ao amor, e um amor ardente. E a impressão que sobre ela esse amor produzia não era de modo algum desagradável, embora não pudesse ser exatamente definível. Ela o respeitava e estimava; era-lhe grata, sentia um interesse real pelo seu bem-estar. E queria apenas saber até que ponto ela desejava que aquele bem-estar dependesse dela, e, para a felicidade de ambos, até que ponto deveria empregar o poder que imaginava ainda possuir de fazer com que ele renovasse as atenções.

Orgulho e preconceito, Jane Austen.

Metades



"Um escritor é, afinal, apenas metade de seu livro. A outra metade é o leitor; e a partir dele é que o escritor aprende”.
P. L. Travers

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Além de histórias de amor e casamento

"É nesse viés da arte como interventora que Jane Austen escreveu e passou a fazer parte do cânone de sua literatura nacional e da literatura ocidental. Foi uma escritora que, por meio do romance, gênero literário que desde seu surgimento “trouxe para primeiro plano a figura da mulher como protagonista” e “demonstrou um interesse sem precedentes pela natureza e posição da mulher” (VASCONCELOS, p.86), contestou (mesmo que por muitas vezes reproduzindo a ideologia de seu tempo), com sua vida e obra, a condição de invisibilidade conferida as suas iguais ou, pelo menos, produziu uma posição emergente sobre a questão de gênero.
Ainda sob influência  das idéias de Richardson, e do neoclassicismo na literatura, Jane Austen, que ocupa “uma posição embaraçadora na história literária – embaraçadora porque por nenhum instante ela se acomoda às generalizações feitas sobre seus contemporâneos” (WRIGHT, 1962,  p.14), apresentou em sua obra um novo tipo de herói, um novo papel para o homem, para a mulher e uma nova concepção de casamento no qual o elemento amor é acrescentado.
Na esfera do doméstico, mundo que ela bem conheceu, Jane Austen apresentou visões alternativas para suas heroínas e dramatizou a situação da mulher em seus romances. Apresentou os conflitos de uma comunidade de mulheres que viviam nesse contexto histórico de transição da aristocracia decadente para burguesia em ascensão. Na esfera do doméstico, Austen apresenta uma comunidade de mulheres ligadas pelo laço do feminino e seus conflitos numa sociedade em tempos de mudança. É bem verdade, que esses aspectos locais de sua ficção atingem a esfera do universal, principalmente no que se refere aos temas dos romances. Contudo, é na vida familiar, nos lares de seu tempo que as relações sociais aconteciam e podiam ser visualizadas e investigadas pelo leitor. Esta característica de sua obra, se considerada, pode refutar argumentos de que sua ficção fica, de certo modo, desqualificada por não conter engajamento ou “preocupações históricas e sociais” importantes. De fato, não é essa idéia de literatura como reflexo e produção da realidade, que vem do pressuposto de uma arte engajada, a aqui aceita e necessária a compreensão do trabalho ficcional de Jane Austen. Terry Eagleton nos ensina que o engajamento não é condição necessária na produção de grandes obras de arte. (EAGLETON, 1997, p.57)
Assim, além do prazer estético que seus romances proporcionam ao leitor, principalmente pelo domínio do uso da ironia, sua ficção oferece ao leitor a oportunidade de reflexão crítica sobre o contexto no qual surgem. No subtexto de sua obra - uma aparente história de amor, sofrimento, rebelião e humor - está a questão da construção da categoria de gênero naquela sociedade patriarcal.”

Trecho do artigo Jane Austen revisitada: além de histórias de amor e casamento, de Carla Alexandra Ferreira (Universidade Federal de São Carlos). Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Confusão

"gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e me confundo inteiro e fico todo enrolado correndo de uma estrela cadente pra outra até desistir. Assim é a noite, e é isso o que ela faz com você, e eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser minha própria confusão." Jack Kerouac

Inoxidable de corazón


Autorretrato
Pablo Neruda
Por mi parte soy o creo ser duro de nariz,
mínimo de ojos, escaso de pelos en la cabeza,
creciente de abdomen, largo de piernas,
ancho de suelas, amarillo de tez,
generoso de amores, imposible de cálculos,
confuso de palabras, tierno de manos,
lento de andar, inoxidable de corazón,
aficionado a las estrellas, mareas, maremotos,
admirador de escarabajos, caminante de arenas,
torpe de instituciones, chileno a perpetuidad,
amigo de mis amigos, mudo de enemigos,
entrometido entre pájaros, maleducado en casa,
tímido en los salones, arrepentido sin objeto,
horrendo administrador, navegante de boca
y yerbatero de la tinta, discreto entre los animales,
afortunado de nubarrones, investigador de mercados,
oscuro en las bibliotecas, melancólico en las cordilleras,
incansable en los bosques, lentísimo de contestaciones,
ocurrente años después, vulgar durante todo el año,
resplandeciente con mi cuaderno, monumental de apetito,
tigre para dormir, sosegado en la alegría,
inspector del cielo nocturno, trabajador invisible,
desordenado, persistente, valiente por necesidad,
cobarde sin pecado, soñoliento de vocación,
amable de mujeres, activo por padecimiento,
poeta por maldición y tonto de capirote.