terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Promessas não cumpridas


Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi pra vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim:
- Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias se José Dias arranjar que eu não vá para o seminário.
A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte, trinta, cinquenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal, perdi-me nas contas.

Dom Casmurro, Machado de Assis

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Na boca da noite

Toquinho



Cheguei na boca da noite,
Parti de madrugada
Eu não disse que ficava
Nem você perguntou nada

Na hora que eu ia indo,
Dormia tão descansada,
Respiração tão macia,
Morena, nem parecia
Que a fronha estava molhada
Vi um rosto na janela,
Parei na beira da estrada

Cheguei na boca da noite,
Saí de madrugada

Gente da nossa estampa
Não pede juras nem faz,
Ama e passa, e não demonstra
Sua guerra, sua paz

Quando o galo me chamou,
Eu parti sem olhar pra trás
Porque, morena, eu sabia,
Se olhasse, não conseguia
Sair dali nunca mais
Vi um rosto na janela,
Parei na beira da estrada

Cheguei na boca da noite,
Saí de madrugada
O vento vai pra onde quer

A água corre pro mar
Nuvem alta em mão de vento
É o jeito da água voltar
Morena, se acaso um dia
Tempestade te apanhar
Não foge da ventania,
Da chuva que rodopia,
Sou eu mesmo a te abraçar

Vi um rosto na janela,
Parei na beira da estrada
Cheguei na boca da noite,
Saí de madrugada

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Mais que um penteado



"Ouvimos passos no corredor; era Dona Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras alegres:

- Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças!

-Que tem? - acudiu a mãe, transbordando de benevolência. - Está muito bem, ninguém dirá que é de pessoa que não sabe pentear.

-O quê, mamãe?Isto?-redarguiu Capitu, desfazendo as tranças. - Ora, mamãe!

E, com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabelos para renovar o penteado. Dona Fortunata chamou-lhe tonta e disse-me que não fizesse caso, não era nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à parede, achou que talvez houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação..."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

É o Imperador!



"Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma ideia fantástica, a ideia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta ideia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo. Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à espera até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador!É o Imperador! Toda gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava. O coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de Dona Glória!Que será?Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando - não me lembro bem, os sonhos são muitas vezes confusos-, pedia a minha mãe que não me fizesse padre - e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.

- A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?

-Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade...

-Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola?É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira oredem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência, basta só isto de dar á saude aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-las... A senhora mesma há de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si ... É uma bonita carreira. Mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim?Você quer, Bentinho?

-Mamãe querendo.

-Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola". E o coche partia entre invejas e agradecimentos.

Tudo isso eu vi e ouvi. Não, a imaginação de Aristo não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sensações alheias



"Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Então, como eu quisesse ir pra dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, era com o gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podia ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas, ainda assim, não creio que fosse ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Um plano


"Prometi falar a José Dias nos termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns como principais; e inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água à pessoa que tem obrigação de trazer.Conto essas minúcias para que melhor se entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete."
Dom Casmurro, Machado de Assis.

Boa intenção


"- Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não disseram nada ou só agradeceram a boa intenção."
Dom Casmurro, Machado de Assis.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Amor é pra quem ama

Lenine


Qualquer amor já é
um pouquinho de saúde,
um montão de claridade.
Contribuição
pra cura dos problemas da cidade.

Qualquer amor que vem
desse vagabundo e bobo,
coração atrapalhado
procurando o endereço
de outro coração fechado.

Amor é pra quem ama.
Amor matéria-prima.
A chama
O sumo
A soma
O tema
Amor é pra quem vive.
Amor que não prescreve.
Eterno
Terno
Pleno
Insano
Luz do sol da noite escura...
Qualquer amor já é
um pouquinho de saúde,
um descanso na loucura...

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Romeu & Julieta






"Mas, que luz é essa que ali aparece naquela janela? a janela é o Oriente e Julieta o Sol. Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida lua." 



(Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II).

sábado, 14 de janeiro de 2012

As curiosidades de Capitu




"Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento — descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar."


Dom Casmurro, de Machado de Assis.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Entre luz e fusco




"Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de casar um com outro, e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas amorosas..."


Dom Casmurro, de Machado de Assis. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Apreciar.




"Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas,  acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas..."


Os cimos, de João Guimarães Rosa. In PRIMEIRAS ESTÓRIAS.

Para o que a gente já sabia...




"O calado, o escuro, a casa, a noite - tudo caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente quisesse, nada podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e de que gostava. "



Trecho de Os cimos, de João Guimarães Rosa, in PRIMEIRAS ESTÓRIAS.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A emoção era doce e nova.




"Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que não me descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias-palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto em recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também."


Dom Casmurro, de Machado de Assis.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Os olhos.




"Soube-os: os olhos da gente não têm fim."


Trecho de O espelho , in PRIMEIRAS ESTÓRIAS, de Guimarães Rosa. 

De flores.


"A manhã se faz de flores."




Trecho de Partida do audaz navegante, in PRIMEIRAS ESTÓRIAS, de João Guimarães Rosa. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A vida é um sonho

O poeta é ao mesmo tempo um leão e um Atlântico. Um nos afoga e o outro nos rói. Se sobrevivemos aos dentes, sucumbimos nas ondas. Um homem que pode destruir ilusões é, ao mesmo tempo, fera e dilúvio. As ilusões são para a alma o que a atmosfera é para a terra. Retirai esse brando ar e a planta morre, a cor empalidece. A terra por onde caminhamos é um ardente rescaldo. É marga o que pisamos, e seixos de fogo queimam os nossos pés. Somos desfeitos pela verdade. A vida é um sonho. É o despertar que nos mata. Quem nos rouba os sonhos rouba-nos a vida.

Trecho de Orlando, Virginia Woolf.

Desejo de prevalecer

Guerra e Paz. Candido Portinari.


Nenhuma paixão é mais forte, no peito humano, que o desejo de impor aos demais a própria crença. Nada também corta tão pela raiz nossa felicidade e nos encoleriza tanto como sabermos que outros menosprezam o que exaltamos. (...) Não é o amor à verdade, mas o desejo de prevalecer que levanta bairro contra bairro e faz uma paróquia desejar a derrota de outra paróquia.

Trecho de Orlando, Virginia Woolf