quarta-feira, 28 de março de 2012

Silêncio




Às vezes, olhando um instantâneo tirado na praia ou numa festa, percebia com leve apreensão irônica o que aquele rosto sorridente e escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio e um destino que me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério. Não. Vou perder o resto do medo do mau-gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é a coragem - e vou dizer que na minha fotografia eu via O Mistério. A surpresa me tomava de leve, só agora estou sabendo que era uma surpresa o que me tomava: é que nos olhos sorridentes havia um silêncio como só vi em lagos, e como só ouvi no silêncio mesmo.

Nunca, então, havia eu de pensar que um dia iria de encontro a este silêncio. Ao estilhaçamento do silêncio. Olhava de relance o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também inexpressivo. Este - apenas esse - foi o meu maior contato comigo mesma? o maior aprofundamento mudo a que cheguei, minha ligação mais cega e direta com o mundo. O resto - o resto eram sempre as organizações de mim mesma, agora sei, ah, agora eu sei. O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome.

Clarice Lispector. A paixão segundo GH

segunda-feira, 19 de março de 2012

Lição


Você é a lição de casa. Por todos os lados, nenhum aluno.
Franz Kafka

sexta-feira, 16 de março de 2012

Perdida


Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.

A paixão segundo GH, Clarice Lispector.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Amor de poeta

Marcelino Freire


O poeta?

Conheci o poeta, sim, na rua.

É, na rua.

Lembro como se fosse hoje, agorinha. Existia uma praça e a gente ficava até a noite. Encostado, vendo o povo passar. Os caras para lá, lálálá. A gente às vezes assobiava sujo.

Eu trabalhava perto da São Bento. Perto da São Bento, não lembro.

Nasci em Araxá.

Sou mineiro de Araxá.

O poeta?

Ele estava de óculos, como sempre. E eu pisquei, eu pisquei assim.

Assim, ó: assim, para conquistar.

Não, não sabia.

Importante era presidente da república, governador. Nem sabia o que um poeta fazia da vida.

Não sabia.

Eu gostava de música.

De samba.

Samba de roda.

Ele me levou para sua casa, sim. Tocou piano, uma marchinha.

A gente ficou ali.

Ficou ali, só. Não tinha essa afobação no primeiro dia.

Dava para ver que era gente educada, letrada. Perguntou se eu estudava. Estudei nada. Escola era para quem tinha uma boa família.

E para quem não tinha preguiça. Eu não queria nada com a vida.

Morava na Barra Funda, Santa Cecília.

18 anos, acho.

O meu sorriso era bonito, ele dizia. E o meu corpo era bonito. Eu gostava de correr, montar, fazer exercícios.

E nadar no Rio Pinheiros.

No Rio Pinheiros, para você ver.

Ele deu um livro para mim. Eu aceitei.

O livro assinado. Se eu soubesse que valia alguma coisa não tinha jogado o livro na rua.

Jogado na chuva. Pisado em cima. Eu tinha roubado era a biblioteca toda.

Era uma biblioteca muito bonita.

Muito bonita.

Poesia nunca encheu barriga.

Até hoje é assim, não é?

A gente se encontrou outras vezes, na mesma esquina. Na mesma praça. Hoje nem sei o que foi feito daquela praça.

Você sabe o que foi feito daquela praça?

No terceiro dia, não sei. Ele veio me tocar. Eu cheio de saúde, deixei. Lálálá.

Eu não era bobo.

Ele me dava dinheiro, me dava camisa, comprava sapato. Mas foi ficando meio pegajoso. Pegajoso.

Agüentei por causa das facilidades, entende? Eu queria um terno, sei lá, uma casa.

Sim, uma casa para morar.

Ganhei um terno e um chapéu novo.

Ele conheceu meu pai, minha mãe. Conheceu minha irmã pequena.

Minha irmã pequena era doente. Morreu de repente.

Ele pagou o enterro todo.

Foi osso quando eu arranjei uma namorada. Foi osso. A coisa engrossou para o meu lado.

Queria compromisso, pode?

No meu pensamento, não era assim tão sério.

Ele inventou uma viagem só para me tirar de perto da Bebel.

Bebel era o nome dela.

Maria Isabel.

Pagou tudo e eu fui com ele. Conheci Pernambuco. Bebi muita água de coco. A gente viajou pelo Nordeste do Brasil.

Como é lindo o meu Brasil, ele dizia. Demorou cinco anos, não sei.

Que a gente ficou junto.

Ele falava sempre que tinha um livro novo. Me mostrava o jornal. Queria que eu entendesse o que ele lia, como podia? Eu, burro desse jeito.

Burro, burro.

Coisa comprida, de dá sono. Mas eu ficava ali, no maior interesse. Me dava de tudo, não queria que eu voltasse para a praça. Queria que eu ficasse com ele, a vida inteirinha.

Coisa chata. Não ia dar certo.

Fui ficando nervoso. Dei para beber. Ele ganhava uns vinhos importados. Era comigo mesmo.

O quê?

Eu também fumava. Depois que a coisa foi me cansando, aumentei o número do cigarro.

Comecei a beber cachaça.

Muita cachaça.

Ele detestava. Vivia querendo salvar o mundo com a sua poesia. Até hoje não sei para que servia tanto verso, tanto verso.

O Tietê tá aí, não deixou de morrer. São Paulo, dá dó de ver.

De quando em quando, eu lembro dele. Não dá pra esquecer, não é?

Era homem muito bom o poeta.

O que mais você quer saber? Mais o quê?

Descobriram o amante do poeta.

É. Todo mundo só fala nisso. O senhor é que foi o amante do poeta? Onde conheceu o poeta? Na rua?

A fofoca tá em tudo que é jornal.

Pode perguntar para o pessoal, ninguém daqui acredita. Ninguém acredita.

Faz tempo que eu não recebo assim tanta visita.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Corridinho



Adélia Prado

O amor quer abraçar e não pode.

A multidão em volta,

com seus olhos cediços,

põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.

O amor usa o correio,

o correio trapaceia,

a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,

desembarca do trem,

chega na porta cansado

de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,

pede água, bebe café,

dorme na sua presença,

chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:

é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água o amor não é.

A escrivã na cozinha


Adélia Prado



Só Deus pode dar nome à obra completa
— de nossa vida, explico — mas sugiro
Ao meio-dia, um rosal,
implica sol, calor, desejo de esponsais,
a mãe aflita com a festa,
pai orgulhoso de entregar sua filha
a moço tão escovado.
Nome é tão importante
quanto o jeito correto de se apresentar a entrevistas.
Melhor de barba feita e olho vivo,
ainda que por dentro
tenha a alma barbada e olhos de sono.
Sonhei com um forno desperdiçando calor,
eu querendo aproveitá-lo para torrar amendoim
e um pau roliço em brasa.
Explodiria se me obrigassem a caminhar por ele.
Ninguém me tortura, pois desmaio antes.
A beleza transfixa,
as palavras cansam porque não alcançam,
e preciso de muitas para dizer uma só.
Tão grande meu orgulho, parece mais
o de um ser divino em formação.
Neurônios não explicam nada.
Psicólogos só acertam se me ordenam:
Avia-te para sofrer — conselho pra distraídos—,
cristãos já sabem ao nascer
que este vale é de lágrimas.

segunda-feira, 12 de março de 2012

história de fadas


"Este livro foi interpretado de várias maneiras, inclusive como pornográfico. Vamos falar de pornografia?"
"Joãozinho e Maria foram levados a passear no bosque pelo pai que, de conchavo com a mãe dos meninos, pretendia abandoná-los para serem devorados pelos lobos. Ao serem conduzidos pela floresta, Joãozinho e Maria, que desconfiavam das intenções do pai, iam jogando, dissimuladamente, pedacinhos de pão pelo caminho. As bolinhas de pão serviriam para orientá-los de volta, mas um passarinho comeu tudo e, depois de abandonados, os meninos, perdidos no bosque, acabaram caindo nas garras de uma feiticeira velha. Graças, porém, à astúcia de Joãozinho, ambos afinal conseguiram jogar a velha num tacho de azeite fervendo, matando-a após longa agonia cheia de lancinantes gemidos e súplicas. Depois os meninos voltaram para casa dos pais, com as riquezas que roubaram da casa da velha, e passaram a viver juntos novamente."
"Mas isso é uma história de fadas."
"É uma história indecente, desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida. No entanto está impressa em todas ou quase todas as principais línguas do universo e é tradicionalmente transmitida de pais para filhos como uma história edificante. Essas crianças, ladras, assassinas, com seus pais criminosos, não deviam poder entrar dentro da casa da gente, nem mesmo escondidas dentro de um livro. Essa é uma verdadeira história de sacanagem, no significado popular de sujeira que a palavra tem. E, por isso, pornográfica. Mas quando os defensores da decência acusam alguma coisa de pornográfica é porque ela descreve ou representa funções sexuais ou funções excretoras, com ou sem o uso de nomes vulgares comumente referidos como palavrões. O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes."


Trecho de Intestino Grosso, in Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.

Pacto



"- Uma mulher de vinte e sete anos - disse Marianne, após uma pausa - não pode mais esperar sentir ou inspirar amor, e se sua casa não for confortável ou se suas posses forem modestas, acho que deva oferecer os serviçoes de enfermeira, em troca de sustento e da segurança de uma esposa. Casar com uma mulher assim, portanto, nada teria de inadequado. Seria um pacto de conveniência, e a sociedade ficaria satisfeita. A meu ver, não seria absolutamente um casamento, não seria nada. Para mim, seria só uma troca comercial, em que cada um pretende lucrar à custa do outro."

Razão e Sensibilidade, Jane Austen.

Aqui se oferece vida

"Passeio pelas estantes da biblioteca. Os livros me dão as costas. Não para me rejeitar, como as pessoas: são convidativos, querendo apresentar-se a mim. Metros e mais metros de livros que nunca poderei ler. E sei: o que aqui se oferece é a vida, são complementos à minha própria vida que esperam ser postos em uso. Mas os dias passam rápido e deixam para trás as possibilidades. Um único desses livros talvez bastasse para mudar completamente a minha vida. Quem sou eu agora? Quem eu seria então?”
A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken, J. Gaarder e K. Hagerup

sábado, 10 de março de 2012

O perigo da história única











Brilhante relato da escritora nigeriana Chimamanda Adichie sobre "o perigo da história única".

"Eu acho que essa história única sobre a África vem da literatura ocidental. Aqui temos uma citação de um mercador londrino chamado John Locke, que navegou até o oeste da África em 1561 e manteve um fascinante relato de sua viagem. Após referir-se aos negros africanos como 'bestas que não têm casas', ele escreve: 'Eles também são pessoas sem cabeças, que têm sua boca e seus olhos no peito.' Eu rio toda vez que leio isso, e deve-se admirar a imaginação de John Locke. Mas o que é importante sobre sua escrita é que ela representa o início de uma tradição de contar histórias africanas no Ocidente. Uma tradição de representar a África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta Rudyard Kipling, são 'metade demônio, metade criança'. [...] Então, é assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, como uma única coisa apenas, repetidamente, e será isso que ele se tornará."

quarta-feira, 7 de março de 2012

É o que está certo


E depois de uma tarde de quem sou eu
E de acordar a uma hora da madrugada em desespero...
Eis que às três horas da madrugada eu me acordei
E me encontrei.
Eu fui ao encontro de mim.
Calma, serena, alegre.
Plenitude sem fulminação.
Simplesmente isso:
Eu sou eu,
você é você.
É lindo, é vasto,
Vai durar.
Eu não sei ao certo
O que vou fazer em seguida,
Mas, por enquanto,
Olha para mim e me ama.
Não!
Tu olhas para ti e te amas
É o que está certo.

Clarice Lisepctor

Persona



Clarice Lispector, na voz de Aracy Balabanian.


"Vou falar da palavra pessoa, que persona lembra. Acho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas."

Keep quiet

"It takes two years to learn to speak and sixty to learn to keep quiet."
Ernest Hemingway

segunda-feira, 5 de março de 2012

O que você quer saber de verdade



Vai sem direção!
Vai ser livre!
A tristeza, não,
Não resiste!
Solte os seus cabelos ao vento!
Não olhe pra trás!
Ouça o barulhinho que o tempo
No seu peito faz!
Faça sua dor dançar!
Atenção para escutar
Esse movimento que traz paz,
Cada folha que cair,
Cada nuvem que passar...
Ouve a terra respirar
Pelas portas e janelas das casas!
Atenção para escutar
O que você quer saber de verdade!

Ressureição

cena do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos

A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A caatinga ressucitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria toda verde.
Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna sacudia os xique-xiques e os mandacarus. Uma palpitação nova. Sentiu um arrepio na caatinga, uma ressureição de garranchos e folhas secas.
Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida, acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois, o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.
Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinha Vitória remoçaria, as nadégas bambas de Sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja das outras caboclas.
A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.
A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.
Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira, o aió, a cuia de água e o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas.
Uma ressureição. As cores da saúde voltariam à cara triste de Sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde.
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.


Trecho de Vidas Secas, Graciliano Ramos